A M. ganhou o hábito de dormir em cima de livros desde a semana passada. o guia turístico de Paris, juntamente com o urso do pijama, são os companheiros de sonhos agora. A C. delira também com a palavra "Paris", com todas as palavras que encontra. continua a gostar de ouvir histórias de quando era pequenina e a não compreender o "mundo antes de eu nascer". O T. faz experiências e fala inglês, faz canções nas viagens de carro, sonha com cobras, ri-se naquele sorriso de rir o mundo inteiro. A M., outra, brinca com uma casa de bonecas e conta a todos uma história, disputa uma torradeira de brincar com o irmão pequeno. D. quer a torradeira para pôr as torradas a fingir a fazer e vê-las saltar no fim. "Já tá!". A C., outra, continua com os ensaios de ballet para o espectáculo do fim do ano. A R. foi fazer análises ao sangue e saiu de lá com dois braços picados, uma chucha na boca e uns olhos muito muito encarnados de quem parecia ter mergulhado na piscina. O J. arrancou cabelos a uma professora hoje, disse "nunca mais volto!" e deve estar a ter uma noite triste no lar para crianças onde vive à espera (eternamente?) que alguma família o adopte. O J., L., M., N,, P, todas as letras são princípios de nomes de crianças. Algumas conheço, outras não. Devia existir uma garantia qualquer de um mundo mais justo para quem é pequenino. Seríamos "grandes" e "crescidos" se, ao nascer, lhes tivéssemos dito, e com verdade, "este é o mundo, podes vir". Porque às vezes são muito complicadas as histórias que não deviam existir nem fazer parte da infância de ninguém. porque esse lugar, a que chamamos de infância, devia ser só de desenhos, bolhas no leite com chocolate, chupas, gomas, andar nas partes pretas dos passeios e acreditar que se fecharmos com muita força os olhos podemos mesmo voar.
Há histórias que não devíam existir, mas se existem, então que tenham um lugar. Nunca tão grande e bem tratado como o das histórias felizes. Longe de acidentes de carro, quedas, sustos, até das otites e dores de garganta. Perto do colo e do amor que todos merecem e, sobretudo, todos devíam ter.
(este texto é para todas as crianças que nasceram às avessas ou no avesso do mundo.
para todas as crianças.
para os pais
ou outro alguém que goste deles
família
amigos.
para as partes pretas nos passeios
as nuvens
e as bolhas do leite com chocolate)
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António