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"A vida mais ou menos"

"Parece que nestes últimos tempos se podia ler acerca de ti nos jornais: que eras a maior especialista em Vieira da segunda metade do século vinte, que foste uma professora de excepção, uma intelectual brilhante, que sobre o barroco ninguém como tu e patati patatá, e para além de se poder ler nos jornais, o teu retrato
(sempre me pareceu teres qualquer coisa de pássaro, os olhos, as sobrancelhas, o nariz, a boca)
iluminava a página. Qualquer coisa de pássaro: não falavas muito, não sorrias muito, só nos pretéritos perfeitos se notava o teu sotaque do Norte, a voz do meu pai ao telefone:
- a Margarida morreu agora mesmo
a voz da minha mãe
- Havia uma empatia especial entre vocês os dois
nunca tinha ouvido a minha mãe usar a palavra empatia e percebi que estava comovida porque a minha mãe não fala desse modo, ao chegar ao Hospital da CUF o Miguel vinha a sair, acho que nunca nos abraçamos com tal força, depois fechei-me com o João no gabinete dele
(há séculos que não via o João de bata)
e
(sabes como são os Lobo Antunes, sabes como é o João)
não dissemos quase nada um ao outro e estávamos os dois tão tristes mas quando saímos para o corredor julgo que disfarçamos bem. Nessa noite sentei-me na mesa da cozinha com os meus pais
( o tempo das criadas acabou-se)
a minha mãe servia o jantar, discutimos Herculano o tempo todo
(conheces o estratagema da família: mal a gente se comove começa a discutir Herculano ou Antero ou Eça de Queiroz)
e nisto o pai levantou-se com a brusquidão do costume, ouviram-se os passos dele nas escadas e ao descer mostrou-me sem uma palavra uma dedicatória tua num livro em que dizias que gostavas muito dele: espantei-me transgredires umas das nossas regras que é a de gostar sem nos referirmos a isso, por pudor, por discrição, porque não é preciso. Ao sair da casa de Benfica pensei
- Vou à igreja
e não fui capaz
(tu sabes que não era capaz)
primeiro por me sentir esquisito
( e patati patatá)
segundo por não querer tomar conhecimento que morreste. Tenho uma fotografia tua na praia com o Zé Maria pequenino e estás muito bonita nela, de pé, com a cabeça baixa, a olhares o teu filho numa atitude do corpo, um bocadinho inclinado para a direita, que conservaste toda a vida.
O enterro foi no sábado. Levei o pai e o azul dos olhos dele
(igual ao azul dos olhos de nós todos)
impressionou-me. Não me lembro o escritor que discutimos
(imagino o teu sorriso ao leres isto)
e todavia lembro-me de querer ficar para trás e de o Miguel me chamar. De modo que após a carreta ia a tua mãe, o teu irmão, e o Miguel, e eu a seguir, abraçado ao Zé Maria e ao João Maria, sou padrinho do mais velho dos teus filhos, estávamos um bocado tensos
(quando escrevo um bocado tu percebes)
e como ías à frente não me viste chorar. Não imaginas a quantidade de enterros que há aos sábados. Dá ideia que as pessoas
(nisto não foste muito original)
esperam a sexta-feira para morrer e incomodarem menos a família porque aos sábados não é costume trabalhar-se. Vai-se ao supermercado e é um pau. O resto passou-se depressa: desceram o caixão, deitaram terra por cima, as flores sobre a terra, ainda estou a ver o Miguel à beira da cova
( hei-de recordar-me sempre do Miguel, direito, à beira da cova, quis fazer-lhe uma festa ou dar-lhe um beijo
e patati patatá
e não dei, claro)
e a seguir, pronto, viemo-nos embora. Tenho uma vaga ideia de estar bastante gente, tenho uma vaga ideia de apertar mãos, tenho uma vaga ideia de bochechas molhadas, tenho uma vaga ideia da alavanca das mudanças do automóvel não funcionar. Logo nesse dia, caramba, a merda da alavanca que funciona sempre. Agora estou aqui sentado à espera do Natal. É que no Natal vens
é o costume
ter comigo para autografar um livro e levá-lo ao Porto ao teu pai. De fevereiro a dezembro, parecendo que não, é imenso tempo. Pode ser que telefones antes
(às vezes telefonas)
a pretexto de me garantires que na tua opinião sou um grande escritor. Nas últimas semanas telefonaste bastante. Claro que não vou contar as nossas conversas mas posso explicar que na última
- Eu depois ligo
deste a entender que dentro em breve te ouvia. E agora desculpa acabar de repente porque a campaínha está a tocar e é capaz de seres tu
- António é a Margarida
é melhor que sejas tu já que
e patati patatá
mesmo que não mostre, e faço os possíveis para não mostrar, tenho saudades de te ouvir. Que gaita de coisa ter tantas saudades de te ouvir."
Livro de Crónicas, 1998
António Lobo Antunes

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