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Roger

“Foi tudo tão rápido, embora goste de velocidades!”

A primeira vez que falei contigo a sós foi por telefone. Queria pedir-te uma opinião, disseste “Sentamo-nos e explico-te tudo!”. Era um dia de trabalho. Achei estranhos a delicadeza e o cuidado. Pensei que fosse por ser amiga de amigos, por ter uma cadela bonita, por mil e uma coisas que não fossem a tua oferta sincera de tempo e presença. Planeámos a ninhada da Areia no Careca, onde nos viríamos a encontrar muitas vezes. Compraste um rádio e uns postais para os bebés cães terem música e paisagem quando estivéssemos longe. O teu cuidado.

Através de ti conheci muitas pessoas. Eras um conector.Os teus pais, a tua casa, tantos dos teus amigos, a quinta, os carros, a igreja dos escuteiros, os planos de viagens, o clube do coração, os planos para jantar, um lanche, uma sardinhada, os festejos do europeu no capot do carro, a tua exigência de cantar o hino em pé, aos berros,antes do jogo começar. O movimento que se sentia à tua volta era o de um furacão sendo tu o centro, a rir.

És a pessoa mais impossível de imaginar morto. Só acreditei quando vi, embora a leveza com que uma velhota levantou o pano que te cobria tenha em mim o peso do Pico condensado nesse gesto, espetado inteiro no coração.

Consola-me o facto de te saber tão feliz momentos antes e de estares no teu lugar preferido. Parece de propósito agora. Tenho orgulho neles, ao teu lado sempre, a pegar-te da forma que puderam e podem, a fazerem tudo pelo Outro. ( Aprenderam-no contigo.) O teu pai fazia festinhas na cara da tua mãe e falava-lhe ao ouvido lá à frente, primeira fila, as mesmas palavras de consolo quando estarias para nascer. O teu irmão, o Padre que não se conseguia despedir, todos com lenços mas já não havia lenços, o Max, o Tiago, a Marta, a Pipa, o Hugo que queria os filhos, os carros em fila e aquele silêncio, o não se conseguir acreditar, a igreja onde me disseste que vista à noite era soberba, os caminhos , os ca rros , lá gri mas, par ti dos, juntos, agarrados para saber que nos temos.
Fui buscar as minhas sobrinhas (precisei mais hoje), fizémos um jantar, elas quase adormeceram à mesa no fim e na manhã seguinte vimos bonecos. Nunca mais tinha visto bonecos mas agora sei os nomes (o teu cuidado), dei-lhes mimos ( a tua ternura), contámos novidades ( a tua presença), apertei-as “com toda a força do mundo!” (a tua loucura), despedi-me (a tua saudade) e no regresso a casa lembrei-me da tua mão, sempre ferida de dentadas, e da forma como pegavas no volante e nas mudanças. Empurravas, a levantar vôo.

Comentários

Anónimo disse…
A PERFEIÇÃO que te caracteriza a escrever.... E as lágrimas a correrem a minha cara... Mais um daqueles "impossíveis".. Imaginar que já não está... É bom ter-te por perto enquanto tornas tudo mais fácil... Mesmo o que não é! Palavras boas.. Identifiquei-me em muitas delas.... Obrigada! Que ORGULHO... Beijinho GRANDE da tua ESPANHOLA*
Anónimo disse…
fffff.... té... estou a chorar com as tuas palavras. linda.
beijo grande e até amanhã!

marta
Patrick disse…
de quem é este blog?
disse…
meu :) Té
disse…
quem pergunta?
Anónimo disse…
Li e reli. E é ele que está aí nas tuas palavras. Gostei e relembrei! Beijos

Tiago Ildefonso

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