Avançar para o conteúdo principal

105


"Morelliana,

Penso nos gestos esquecidos, nos múltiplos acenos e palavras dos avós pouco a pouco perdidos, não herdados, caídos um a seguir ao outro da árvore do tempo. Esta noite encontrei uma vela em cima da mesa, e por brincadeira acendi-a e andei com ela pelo corredor. O ar do movimento ia apagá-la, então vi a minha mão esquerda levantar-se sozinha, fazer uma cova, proteger a chama como um abat-jour vivo que afastava o ar. Enquanto a chama se colocava novamente aberta, pensei que esse gesto tinha sido o de todos nós (pensei nós e pensei bem, ou senti bem) durante milhares de anos, desde a Idade do Fogo até ao dia em que no-lo trocaram pela luz eléctrica. Imaginei outros gestos, o das mulheres a levantarem a ponta das saias, o dos homens a procurarem o punho da espada. Como as palavras perdidas da infância, ouvidas pela última vez da boca dos velhos que iam morrendo. Em minha casa já ninguém diz a "cómoda de alcânfora", já ninguém fala dos "tripés". A mesma coisa para as músicas de época, para as valsas dos anos vinte, as polkas que tanto enterneciam os nossos avós.
Penso nesses objectos, nessas caixas, nesses utensílios que aparecem às vezes nas despensas, nas cozinhas e em esconderijos, cujo uso já ninguém é capaz de explicar. Que vaidade a de pensar que compreendemos as obras do tempo: ele enterra os seus mortos e guarda as chaves. Só nos sonhos, na poesia, nos jogos - acender uma vela e andar com ela pelo corredor-, é que por vezes nos aproximamos daquilo que fomos, antes de ser isto que não sabemos se somos."

Comentários

Mensagens populares deste blogue

dear Sophia, it's really late. I've just arrived home after a dinner at my grandma's house. she's still so special. everyone ate a lot, we talked about old friends, ourselves when we were growing up. there are always stories about africa. we are all so linked there, so many miles away and yet. we talked about you, alexis and darril. and also about the bulldogs that my uncle used to have and were pretty awfull and scary. I was really afraid of them, but one day I grabbed a horn and chased them trough the garden until they were crying with the noise. never bothered me again. we also mentioned cape town and pretoria, your house, your family, I remember you so dearly it's hard to say. you were my friend and were a bit like me. you thaught me english and had the patiente enough to hear me reading, laughing out loud in a bed full of animals and pillows that we throwed until they reached the ceiling, you knew the piano but hated it. you knew everybody and everything so wel

sorriso de março

hoje de manhã ía no autocarro a ouvir música e a pensar em qualquer outra coisa para além do transporte e da manhã em volta. O que me fazía regressar ao banco do bus eram as sacudidelas da tosse que me tem feito companhia e ajudava a mudar de posição no banco de forma quase automática. Isto, claro, além de uma nova arrumação dos pulmões, já que suspeito que me saíram várias vezes cá para fora, embora ninguém mostrasse o olhar espantado de "pulmões-ao-relento". Depois de uma das sacudidelas, que não contei por serem muitas, vi uma caixa de medicamentos no meu colo e uma uma senhora de olhos transparentes que a segurava. "Tome, ajudam muito. Tambémm estive assim e sei bem o que é", disse ela. Tinha um sorriso inteiro, estava muito arranjada, com o ar de quem não tem sono e de que todos os dias são dias especiais, e tinha olhos de Tejo. não são as palavras que fazem as pessoas, mas os gestos. este veio com a solidariedade dos viajantes, um sorriso e um olhar. Obriga

injusto

tenho visto muito menos os meus vizinhos do lado. nem pensei muito no assunto. meteu-se a parte final do ano, os exames e as últimas entregas de trabalhos, e depois houve o trabalho no colégio, alguns dias de praia e o algarve. cheguei hoje a casa e a minha mãe contou-me que o joão, o filho, mais novo de todos, teve um acidente. estava a deslizar no corrimão da escola e caíu. está há dois meses no hospital, em coma. neste momento está em alcoitão, reconhece a mãe, tem uma irmã que entra pelo quarto a dar força a todos e a dizer que "ele vai ficar bom". e o joão é só um menino que eu às vezes vejo, que às vezes toca á camapaínha e pegunta se o tobias pode ir lá brincar um bocadinho para casa. pergunta-me sempre se ele faz xixi, eu digo que não mas espero que o cão não tenha nenhuma vontade repentina que me estrague o plano e a brincadeira do joão. tem uma mochila quase maior que ele e uns olhos à chinês. vejo-o nas escadas. agora percebo o olhar triste do pai e da mãe, quan