"(...) demonstrou-nos que as divisões são importantes em dadas circunstâncias, mas não são tudo. Há poderes imateriais, não avaliáveis a peso, que seja como for pesam.
Estamos rodeados de poderes imateriais, que não se limitam aos que denominamos por valores espirituais, como uma doutrina religiosa. Também é um poder imaterial o das raízes quadradas, cuja lei severa sobrevive aos séculos e aos decretos não só de Estaline, mas até do próprio Papa. E entre estes poderes eu também incluiria o da tradição literária, ou seja, do conjunto de textos que a humanidade produziu ou produz não para efeitos práticos (como ter registos, anotar leis e fórmulas científicas, fazer actas de sessões ou estabelecer horários ferroviários) mas antes gratia sui , por amor de si própria - e que se leêm por prazer, elevação espiritual, ampliação de conhecimentos, se calhar por puro passatempo, sem que ninguém nos obrigue a fazê-lo (se exceptuarmos as obrigações escolares).
É isto que dizem todas as grandes histórias, quando muito substituindo Deus pelo destino, ou pelas leis inexoráveis da vida. A função dos contos "inalteráveis" é justamente esta: contra todos os nossos desejos de mudar o destino, dão-nos palpavelmente a impossibilidade de o alterar. E assim fazendo, seja qual for a história que contam, também contam a nossa, e por isso os lemos e amamos. Temos necessidade da sua severa lição "repressiva". A narrativa hipertextual pode-nos educar oara a liberdade e para a criatividade. É bom, mas não é tudo. Os contos "já feitos" ensinam-nos também a morrer."
Umberto Eco
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