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O Lopes vive em Campo de Ourique. Divorciado, joga ao king e à canasta nas noites de sexta e atravessa a pista do estádio universitário até o peito abrir fechar como acordeão aos sábados de manhã. Apara o bigode aos domingos e janta com a Mãe nessa mesma noite, tudo o mais são os percursos de autocarro até à oficina, regressando à noite. Acha-se bonito, as senhoras não.

Reformou-se. Para encher o tempo antigo do autocarro e da oficina trocou-os pelo rio e anda a pé nos dias úteis. Pode levar um cão de um vizinho, “coitado do bicho nunca passeia!”, e à tarde trabalha a sério num anexo onde guarda tudo a que deitou a mão desde que era criança. Tralhas, os seus babetes, a fotografia “do meu menino tão lindo no baptizado” assinada pela Mãe e emoldurada a dourado, os óculos de massa do Pai, um urso de peluche com um olho e um arco amolgado que dantes descia a calçada sem hesitar a fazer “vvvvum vvvvum”.

Agora tem um trabalho sério, de homem. Arrasta móveis de que não gosta de um lado para o outro, faz do anexo sala num dia e no outro quarto para quem possa aparecer, a casa sempre vazia. É trabalho sério que só o deixa chegar ao sofá a tempo do jornal das dez. Recupera forças porque no dia seguinte, a caminho do rio, pode encontrar uma cadeira ou mesa de cabeceira junto ao lixo, “uma asneira!”, e fazer o caminho com tudo às costas num esforço sobrehumano pouco relacionado com pessoas.

O Lopes tem um filho astronauta preocupado com os buracos da lua. Espreita por um telescópio à noite e dorme de dia. Não falam os dois. Dizem “bom dia”, “boa tarde”, fazem “hum hum” quando o empregado do café pergunta se querem “o costume?” cada um no seu balcão, um em campo de Ourique e o outro na Avenida da Liberdade. Ao filho falta um dente que sissia palavras, ficou tímido. O pai não fala, grita, diz ele que tem um defeito no ouvido e só ouve muito alto, “para me ouvir só assim, só assim!!”. Não se percebe como adivinha o autocarro na curva do fundo da rua e sai de casa a tempo de passar à frente de todos na paragem. Um dia destes prego-lhe uma rasteira.

Comentários

Anónimo disse…
Sempre que te leio fico "presa" da tua escrita que me diz qualquer "coisa".. E fico com inveja de escrever assim...
Beijinhos
María (Mãe)
disse…
gracias e saudades;)

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